sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Veneno

     Respiro fundo mais uma vez e inspiro a vida que busco. Fecho os olhos e vem uma imagem translúcida do que quero de mim - um reflexo. É intrigante a maneira como planejo o futuro terceirizando minha alegria - as vezes intrigante demais.
     Mas o futuro parece cada vez mais próximo e as realizações cada vez mais distantes, escorrega por entre meus dedos minha visão: estou cego, estou perdido. Vasto seja o caminho que tenho pela frente, não só pela frente como por todos os lados. Vasta seja a vida que vem, vasta seja a visão que enxerga mais do que (eu) gostaria de ver.
     Eis que surge - cai do céu - uma resposta; tão de repente não há mais perguntas. É só um assunto. Talvez recorrente demais, pois com ele converso todos os dias. É só uma experiencia, talvez forte demais, pois experimento todos os dias. E ela sussurra calma no meu ouvido, traz-me vida e dá-me a certeza de que dentre minha perdição há um caminho. E trago aquele caminho, vivo aquele caminho - sou abraçado pelas mesmas asas que de mim se afastam: sou um brinquedo. Um toque macio que seda os sentimentos, tão macio quanto o mais nobre dos tecidos, tão presente quando a mais forte das duvidas.
     E as abrem-se as asas, voando para longe:
     - Como pôde tanta recorrência ter tão pouca significancia? - pergunto.
     - É simples se parar e pensar: há assunto, mas não há vontade. Não saberia explicar nem por toda razão deste mundo.
     - Mas como explica-me aquele dia? E aquele outro? E aquela brisa ou aquele olhar? Como se desempenha a mascarar tudo aquilo e sedar-se do que pode vir a sentir por mim? - novamente pergunto.
     - Não sei te explicar. Volto sempre a te abraçar, pois te ti não quero distância, quero-te perto - mas talvez não tão perto. É algo em ti - ou algo em mim - que não brilha, não satisfaz. Não se constrói futuro de coisas assim, não se começa algo assim.
      Abro um maço, trago um cigarro a minha boca e reflito por um instante. Há alguma beleza na fumaça circulando os seus problemas e amortecendo-os a medida que você cai de um voo alto (ou quando te largam em pleno voo). A queda parece ser mais tranquila. Trago de novo, mas não o cigarro, agora trago aquele momento. E ponho-me novamente à situação:
     - Como podes não construir um futuro baseado em coisas assim? São coisas assim que fazem o próprio futuro! Apenas deixe a brisa nos levar para longe, suas asas são suficientes para nós dois, o tempo se encarregará do resto. E como dizes que não há brilho ou faísca? É inegável que há, em dados momentos. Mas apenas precisamos desses momentos.
     - Talvez seja assunto demais, eu posso ter o tanto quanto quiser contigo e sempre vou ter mais. Isso nunca tive e não quero deixar de ter, mas o voo... acho que já voei mais alto. Você é denso demais.
     - Denso? Culpa minha carga por sua incapacidade?
     - É, denso... sabe? Algo que não necessariamente pesado, mas difícil de carregar. É tudo metafórico. Mas pense nisso por um instante: adoro a maneira como fala e tem ideias e é capaz de dissertar sobre diversos assuntos. Admiro sua visão e gostaria de compartilhar dos óculos que usa as vezes. De fato, até considero tua palavra. Mas não fale sobre minha incapacidade. Recordo-me de ter carregado pesos maiores.
     - Pois digo que ainda há chance. Não jogue fora, nem todo voo que começa baixo termina baixo.
     - Mas nenhum voo que mantem-se baixo é capaz de subir.
     - Se for assim, como planadores sobem?
     - Não quero saber da física. Desprezo a física e a tua lógica-sentimentalista. Você se baseia demais nela. Não consegue entender o que quero dizer? É um analfabeto funcional, isso que é! Mal consegue ler as entrelinhas. Tudo que disse, disse em teu valor. Veja: se não tivesse dito aquelas coisas, teria vindo à mim?
     - Sadismo! Podre!
     - Foi necessário.
     - Egoísmo! O mundo não gira em torno de seu umbigo!
     - Não tenho umbigo. Sou uma parte de ti que não podes tocar, não se esqueça disso. Lembre-se que não tenho sabedoria física ou matemática do que podes tocar. Sou tão instintivo quanto o que sentes: por mais que culpe a lógica do seu raciocínio, não consegue explicar o que sente!
     - Não ponha a culpa em minha mente.
     - Ponho sim. Na sua mente e nessa sua inacessível irracionalidade. É apenas real o que tocas e a mim não pode encostar um dedo sequer. Sou o que vê, mas não o que tocas. Sou o que sente do que tocas.
     Agora faz sentido, pouco sentido, mas se existe algum sentido nessa história, ele começa aqui. Talvez. Costumo dizer que há um limite muito tênue entre a sanidade e a insanidade - cruzei esse limite algumas vezes, fui e voltei. Foi tão fácil ir e tão difícil voltar que me proibi de ir apenas pela dificuldade de voltar, acho que é assim que as coisas funcionam, praticamente... mas não tem tanto a ver com praticidade, talvez mais a ver com o que fui capaz de criar. E então ouço, sem perguntar nada, apenas me é dito:
     - Sabe, foi você que criou isso tudo. Esse problema todo, você complicou tudo. Você quis o controle da situação, e você fazia graça dos controladores... francamente. Tantas vezes você questionou o seu erro e cometeu-o dessa vez. Entenda, há um problema um tanto... filosófico aqui. Nem tão físico, mas metafórico, novamente. Você acredita que bons voos começam baixos, mas eu sempre gostei quando saltei alto e mantive-me alta - e acredito no que gosto. Como podemos conviver assim? Seja franco.
     - É, talvez não possamos. Começamos uma relação fadada ao fracasso sem nem sabermos. Somos tão parecidos, tanta aparência! E como pôde essa pequena diferença afastar-nos? Tão pequena, imensurável. Minha visão fica turva apenas em pensar que de ti me afastarei e então terei de ver-te em outros caminhos...
     - Mas é isso, vá. Adeus. - concluo.
     - Nos falamos? Eu não quero distancia.
     - Eu quero. O máximo de distancia possível.
     - Mais um problema?
     - Sim, todos... vou embora. Deixe-me, tenha-me desta forma ou não me tenha de forma alguma. Não posso fugir do clichê.
     - Se peco no sadismo, você pecou em ser tão previsível. Despresível.
     - Pare de me torurar, vou embora. Adeus. Tenha uma boa vida, viva bem. Siga o caminho que mereces, não se deixa enganar. Não quero saber de você daqui a dez ou vinte anos como uma promessa não cumprida. Adeus.
     Acabou.
     Assim terminou a conversa. Não há conclusões a serem tiradas, não há nada a ser dito - ou mostrado. O que é para ser lembrado será lembrado, mas serei esquecido. Apenas lembrarei sem ser lembrado. Falo comigo mesmo, pois sou duas pessoas agora: sou quem fala e quem ouve. Sou os dois lados da moeda, entendo ambos. Mas falho em contentar-me em entende-los...
     Portanto, ponho-me a livrar-me do veneno que correu em minhas veias: eu mesmo.
     Ora, o caminho é vasto de novo. A visão está cansada de novo, o medo volta e a perdição também. E perambulo sozinho, andando livre entre meu lado são e meu lado insano, buscando um porquê, buscando uma data e um local. Sigo, apenas sigo.
     Não há nada a dizer, mas há algo que refuto a aceitar. Devo, contudo, acostumar-me a ideia agora, para que um dia possa aceitar - quem sabe? Pois, de tudo dito, nada foi retirado. Essa conversa não significou nada, de novo...